ADMINISTRAÇÃO DO RISCO EM POSIÇÕES CRÍTICAS
PARTE I
I - INTRODUÇÃO
Prever o futuro sempre foi uma das maiores aspirações do ser humano.
Desde os tempos antigos, oráculos, sacerdotes, xamãs e feiticeiros, todos eles procuraram desenvolver rituais e procedimentos para sondar o porvir, e assim adquirirem poder e glória perante o povo e os soberanos. Naqueles tempos, acreditava-se que o Destino imperava como o Senhor maior de todos os humanos, que desde o berço em que nasciam já tinham traçado diante de si todos os fatos que viveriam, até a morte e mesmo além dela. Assim, ter intimidade com o Destino significava deter o conhecimento do futuro.
Mesmo as civilizações mais adiantadas daquele tempo, como os gregos por exemplo, renderam-se a esse estado fatalista, e mesmo os avanços na Geometria Euclidiana e na Filosofia de Platão foram insuficientes para mudar esse estado de coisas.
Mais tarde, já a partir da Idade Média, matemáticos e aventureiros, movidos pela necessidade de ganharem em jogos como cartas e dados, desenvolveram técnicas e conhecimentos dirigidos ao controle de apostas. Para tanto, utilizaram como ferramenta o Sistema Arábico de Numeração, recém introduzido na Europa por Leonardo de Pisa, mais conhecido como Fibonacci. É de sua lavra, ou pelo menos foi aquele que deu a conhecer ao mundo europeu, a famosa Série de Fibonacci, cujo termo qualquer sempre será a soma dos dois precedentes: 1,1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, etc. Essa série tem hoje larga aplicação nas Artes, Arquitetura, Economia, Astronomia, Produção de Alimentos, etc.
Assim, o vínculo entre a Vida e o Destino foi rompido, e passou-se a acreditar que, se os eventos de nosso cotidiano ainda permaneciam aleatórios e fora de nosso controle, pelo menos, em alguma medida, eles poderiam ser administrados.
Inicialmente dirigida quase que exclusivamente aos jogos de azar, mais tarde, convertida em doutrina, a Teoria das Probabilidades teve sua aplicação dirigida as mais diversas áreas, como Seguros, Engenharia, Medicina, Economia, Astronáutica etc.
Assim, toda a incerteza que paira sobre qualquer evento, seja ele de ordem física, psíquica, comportamental, etc., pode ser ordenada de forma a maximizar os efeitos desejáveis e minimizar os indesejáveis.
A aleatoriedade presente nesses eventos pode ser objeto de estudo e manejo, para quantificação de expectativas de ocorrência, ou de não ocorrência. É assim com os experimentos biológicos, é assim também com pesquisas eleitorais, por exemplo.
Mas, o que tem isso tudo a ver com o Xadrez?
Tem tudo a ver. Observe-se o que diz o físico Leonard Milodinow, em seu best seller “O Andar do Bêbado”:
"...o xadrez não traz nenhum elemento aleatório explícito. Ainda assim, a incerteza existe, pois nenhum dos dois jogadores sabe ao certo o que o adversário fará a seguir. Se forem grandes jogadores, conseguirão, na maior parte das situações, enxergar algumas jogadas à frente; se avançarem muito mais, a incerteza crescerá, e ninguém saberá com segurança qual será o desenrolar exato do jogo. Por outro lado, em retrospecto, geralmente é fácil explicar por que cada jogador fez a jogada que fez. Trata-se novamente de um processo probabilístico cujo futuro é difícil de prever, mas cujo passado é fácil de entender."
Todos os que se dedicam ao Xadrez têm bem presente essa incerteza. É bem por isso que, a par do talento inato, o jogador tem que estudar abertura, meio jogo e final. Precisa familiarizar-se com os conceitos de tática e de estratégia. Necessita conhecer posições típicas, estruturas de peões e técnicas de condução de finais. Todo esse conhecimento é fundamental para a compreensão do jogo e a boa performance em competições.
Para tanto, os elementos de aleatoriedade e incerteza, como já configurados, precisam ser identificados e, o quanto possível, administrados, para que a grande dificuldade consistente no planejamento de uma partida tenha um controle razoável.
A isso, pode-se denominar Administração do Risco.
II – ADMINISTRAÇÃO DO RISCO EM POSIÇÕES CRITICAS
1. Variáveis
O tratamento de aleatoriedades e incertezas, como já explicado, consiste em administrar o risco da atividade. No Xadrez, isso também se aplica.
Entretanto, deve-se destacar que o campo é vasto e de altíssima complexidade. Compreende temas como linhas de aberturas e defesas, pensamento estratégico, cálculo concreto de variantes, controle do tempo, e muitos outros.
Nesse trabalho, a administração do risco será aplicada exclusivamente no tocante à posições críticas.
Conceitua-se posição crítica, para esse propósito, como aquela em que o jogador aspira tirar o melhor proveito possível, no caso de sua ocorrência no desenrolar da partida.
É aqui que entra em cena a análise de variáveis que concorrem para o aparecimento das posições típicas planejadas. Essas variáveis são de dois tipos:
a)- Variáveis definidas ou conhecidas
b)- Incógnitas.
2. Variáveis definidas ou conhecidas
São elementos conhecidos pelo jogador, antes da partida ser jogada.
Personalidade, sua e do oponente, estilo de jogo, posição no torneio ou no match, preferências de aberturas, performance-objetivo no torneio, estado físico e psicológico, etc., são todos fatores que podem e devem ser conhecidos, para um adequado planejamento de jogo.
Mesmo em torneios rápidos, muito freqüentes nos dias atuais, o conhecimento desses fatores, na medida do possível, será útil para obtenção do resultado esperado.
Conhecidos o maior numero possível desses elementos, pode-se então chegar, dentro da linha escolhida, a uma outra variável conhecida, ou seja, à posição critica de estudo.
A posição critica de estudo pode ser de qualquer natureza: levando-se em conta os elementos retro mencionados, após escolhida a abertura ou defesa a ser adotada, pode assumir característica dinâmica, desequilibrada, ou marcadamente posicional. O importante, aqui, será a sua conceituação e preparação para entrar na linha mais adequada ao momento.
3. Incógnitas
Incógnitas representam toda a incerteza que cerca uma partida durante o seu transcorrer. O jogador deverá estar técnica, física e emocionalmente preparado para enfrentar fatores imprevistos, ou seja, fatores que não puderam ser objeto de consideração durante a fase prévia de preparação. Por exemplo, pode suceder que a linha de abertura/defesa estudada não ocorreu, o adversário tem uma postura esportiva diferente da normal, ocorreu uma novidade teórica, e, o pior de todos os fatores imprevistos, ocorrência de um lance inferior, comprometedor do resultado almejado. Todos esses eventos fazem parte de extenso rol de incógnitas.
4. Preferências dos mestres
De um modo geral, mestres preferem trilhar caminhos já percorridos ou estudados, dando assim preferência às variáveis conhecidas. Isso aumenta a autoconfiança e melhora a performance esportiva. O trabalho e a preparação domésticos sobre essas variáveis é intenso e generalizado. Fundamentalmente, essa é a Administração do Risco que se aplica às variáveis definidas ou conhecidas.
Por outro lado, também de um modo geral, mestres evitam ao máximo trilhar caminhos desconhecidos, porque sabem que as incógnitas são de difícil manejo durante a partida viva, ainda mais sob pressão do tempo.
É por esse motivo que, muitas vezes, assistimos ao um contínuo repetir de linhas já anteriormente jogadas por dois adversários, seja em torneios, seja em matches como o que transcorre atualmente.
E mais, a partir de uma determinada posição crítica, que pode ser preparada de antemão ou provocada durante a partida viva, a Administração do Risco implica ainda na execução de variantes que coloquem o adversário em confronto com suas próprias dificuldades.
Geralmente, é nessa modalidade que são criadas as grandes obras-primas do Xadrez, com partidas que primam pela sua beleza, seja de ordem tático-combinatória, seja de ordem estratégico-posicional.
Cálculo concreto de variantes em posições com muitos lances-candidatos, complicações para exploração de pouco tempo disponível, variantes que se anteponham ao estilo de jogo do oponente, lances de espera passando a obrigação de jogar o lance correto para o lado adversário, alta complexidade em posições aparentemente simples, todos esses elementos constituem recursos que, quando conhecidos de um lado e imprevistos para o outro, permitem o manejo da incerteza e da aleatoriedade em proveito próprio e em prejuízo dos interesses da outra parte.
E, quando fatores imprevistos assim ocorrem, com presença de algumas das incógnitas referidas, ou de outras aqui não mencionadas, a Administração do Risco do jogador perante essas dificuldades vai depender em grande parte de sua estabilidade emocional, de sua conceituação adequada em termos do plano a ser adotado/revisto e, no caso de emergir das complicações com posição inferior, de sua capacidade de resistência, colocando todas as dificuldades possíveis à obtenção da vitória do oponente. Essa foi, por muitos anos, a técnica adotada por Anatoly Karpov.
III – PARTIDA - EXEMPLO
A Segunda partida do Match pelo Título Mundial – FIDE 2010
Essa partida é de grande interesse, sob variados ângulos. No que diz respeito ao tema aqui tratado, constitui modelo interessantíssimo para se aferir a aplicação de Administração do Risco.
Primeiramente, há que observar as circunstâncias anteriores à realização do match, e da partida em si.
1. Circunstâncias do match:
Anand é o atual detentor do título. Seu estilo é considerado como universal, reunindo características tático-estratégicas que colocam-no, há muitos anos, como um dos GMs mais fortes da atualidade.
Topalov, o desafiante, possui estilo vigoroso e brilhante. Tem em seu currículo resultados estupendos, com belíssimas partidas de ataque. Antes do match, declarou que iria seguir a Regra de Sophia, segundo a qual não iria oferecer empate ao adversário, ficando a eventualidade desse resultado restrita às três situações previstas: repetição de lance, material insuficiente para o mate ou rei afogado.
O evento ocorre em Sophia, capital da Bulgária, terra do Topalov. Ali, cercado pelos seus admiradores conterrâneos e tendo como suporte técnico a equipe capitaneada pelos mestres Danailov e Cheparinov, o desafiante fará tudo o que for possível para tentar desestabilizar Anand, conhecido por seu caráter afável e forteza emocional.
2. Circunstâncias da partida:
A partida foi jogada em pesado clima de expectativa, principalmente em função do resultado da primeira, onde Anand sucumbiu tragicamente ante um ataque devastador de Topalov, cometendo erro grave e entrando em inapelável rede de mate. Diante de resultado colhido em cenário tão dramático, para cortar o aumento da autoconfiança de Topalov, Anand precisava colher pelo menos um empate na segunda partida, e assim rolar o match para a terceira partida, procurando neutralizar a pressão imposta pelo desafiante.
Para tanto, optou por jogar uma Catalã, supostamente preparada para o match.
Anand – Topalov,
Match Wch – Sophia/BUL – 25/04/2010 (2)
ECO E04 – Catalã
1. d4 Cf6 2. c4 e6 3. Cf3 d5 4. g3 dxc4 5. Bg2 a6 6. Ce5 c5 7. Ca3 cxd4 8.
Caxc4 Bc5 9. O-O O-O 10. Bd2 Cd5 11. Tc1 Cd7 12. Cd3 Ba7 13. Ba5 De7 14. Db3 Tb8
Até aqui, tudo transcorreu como na partida Gulko – Shulman, Campeonato Americano de 2008, e supostamente conhecida de Anand.
Portanto, se ele optou por jogar essa linha, é porque devia ter algo preparado para essa posição.
Topalov tem um peão a mais, central e avançado. Entretanto, o preço pago por essa vantagem material é uma posição restringida e subdesenvolvida, porém sólida.
Anand investiu na entrega de um peão, que em certa medida constringe sua posição central. Entretanto, suas peças ocupam posições ativas, onde o destaque é o Bispo Catalão de g2. Essa peça, conjugada com suas colegas, oprime toda a ala da Dama das pretas. Assim, Topalov precisa realizar lances precisos, para não criar debilidades e permitir a invasão de sua posição.
15. Da3!!
Essa é a resposta, marcadamente psicológica, que Anand dá em relação à forma como foi vencido na primeira partida. Sem titubeios, sem lances burocráticos, porque se assim fora, do outro lado está um adversário formidável, pronto para explorar qualquer fraqueza emocional de seu oponente.
A avaliação de Anand parece ser a seguinte:
a) a Dama de e7 é uma das poucas peças ativas de Topalov, e fundamental para a defesa de sua posição restringida. Desaparecida essa peça, as casas pretas centrais, principalmente d6, ficam sem controle, com conseqüente incremento do domínio exercido pelas brancas.
b) O alívio da posição das pretas passa necessariamente por câmbios de peças, e aqui o plano de Topalov pode ser viabilizado mediante o salto de seu cavalo a c5. Com isso, poderia ser eliminado o cavalo bloqueador de d3, e até mesmo a troca de seu bispo de a7 pelo ativo bispo de a5. Portanto, plano com essa consistência precisa ser neutralizado.
15...Dxa3 16. bxa3!
Essa era a resposta que Anand tinha a dar nessa posição. É um lance que não coloca necessariamente Topalov em inferioridade, mas pelo inusitado da situação – brancas deliberadamente “enfraquecem” seus peões da ala da Dama, e isso ainda com um peão a menos – passa a responsabilidade de equilíbrio da posição para o lado das pretas.
Aqui, a atitude levada a termo por Anand consiste em negar a Topalov os procedimentos usuais de liberação e defesa: câmbio de peças, desenvolvimento da ala da dama, luta pela diagonal h1-a8 e pela coluna c, entre eles, para finalmente explorar sua vantagem material, seja exercendo-a, seja devolvendo-a mediante transformação em outra vantagem..
Deliberadamente, Anand abre novas linhas sobre a posição adversária, mesmo a custa de comprometimento de sua estrutura de peões. O resultado? Incerteza! Só que essa incerteza é conhecida de antemão pelas brancas, o que não ocorre pelo lado do desafiante. Portanto, constitui uma das formas de Administração do Risco pelas brancas.
16....C7f6
Não permitindo que seus peões centrais fiquem dobrados ante um eventual Bg2xd5, mas muitos comentaristas são de opinião que talvez fosse melhor 16...Cc5, pretendendo câmbio de peças e alívio da posição restringida. Nesse caso, a melhor resposta das brancas talvez fosse 17.Cd6, mantendo a pressão na diagonal h1-a8 e nas colunas b e c.
Portanto, esse já é um primeiro indício de que o desafiante não está se colocando à altura do que exige a posição. Prefere manter uma atitude de espera, procurando apenas não debilitar sua posição.
17.Cce5
Em consonância com o plano traçado, Anand prossegue em sua ação de impedir o desenvolvimento das peças adversárias, melhorando ainda o posicionamento das suas. O plano geral imediato consiste em completar a ocupação das colunas b e c (ou o total domínio da coluna c), segundo as exigências da posição, prosseguindo também no incremento da restrição da posição contrária. Tudo, conforme exigido pela Administração do Risco por ele adotada.
17…Te8 18 Tc2 b6
Uma decisão difícil. Para disputar o domínio da diagonal h1-a8, Topalov debilita sua estrutura de peões e cede o controle da casa c6. Talvez esse evento já fosse esperado por Anand, que por certo deve conhecer suficientemente a personalidade agressiva de Topalov.
19.Bd2 Bb7 20.Tfc1
Anand prossegue em sua atitude de pressionar a posição adversária, não permitindo a ansiada disputa pelo controle da coluna c pelas torres pretas. Em caso de 20...Tc8, segue 21.Txc8 Txc8 22.Txc8+ Bxc8 Cc6, e o controle da casa c6 renderia ao campeão um ponto inteiro, porque o bispo de a7 não tem defesa.
20...Tbd8 21.f4!
Concretamente, Anand avalia que a cessão do domínio da casa e3 é compensada pela restrição imposta ao eventual avanço e6-e5, deixando assim o peão de d4 praticamente isolado.
21.Bb8 22. a4!
Nova restrição de avanço dos peões pretos, dessa vez na ala da Dama. O campeão pretende, assim, deixar Topalov em estado de imobilidade total, apenas a esperar o desenrolar dos acontecimentos.
Acresce ainda que o avanço do peão “débil” de a3 pode assumir importante função debilitante da falange “sólida” a6-b6. O plano aqui consiste em realizar, no momento adequado, o avanço a4-a5. Se pretas trocam em a5, o Bispo de d2 ocupa esta casa, com efeitos deletérios na posição contrária. Se, por outro lado, Topalov realiza o avanço b6-b5, cede outra casa – dessa vez c5 - importante para a invasão branca, também com efeitos desastrosos para o lado das pretas.
Confrontado com todas essas dificuldades, Topalov prefere o avanço a6-a5, tornando sua estrutura de peões na ala da Dama um objetivo fixo para as ativas torres brancas.
22...a5 23. Cc6 Bxc6 24. Txc6
No momento adequado, Anand exerce seu domínio sobre a casa c6 e, ante o forçado câmbio Bb7xc6, prossegue na obtenção da vantagem, agora posicionando suas torres em postos de ataque direto aos peões da ala da Dama e ao isolado peão central.
24...h5
Esse lance foi muito criticado pelos analistas, os quais consideraram-no uma debilidade desnecessária. Entretanto, corresponde a um plano de defesa traçado pelo desafiante que, como será descrito a seguir, consiste em um de seus únicos recursos para tentar salvar a partida.
25. T1c4
Atacando o peão central com a segunda torre. Aqui a defesa desse peão exige o passivo Bb8-a7, aumentando o comprometimento das peças pretas. Com manobras como Rg1-h1, e Cd3-c1-b3, a queda dos peões pretos seria uma questão de tempo.
25...Ce3
Também um lance criticado pelos analistas. Entretanto, é consistente e coerente com o plano de defesa traçado pelo desafiante, e bem dentro de seu estilo agressivo.
Conjugado com o lance anterior das pretas, esse lance encerra a aspiração maior de Topalov, qual seja o de devolver, e até sacrificar material para neutralizar a vantagem das brancas. É de se destacar que as torres pretas, posicionadas em colunas centrais, sem possibilidade de enfrentar o domínio absoluto da coluna c exercido pelas brancas, estão sedentas de atividade. A torre de d8 já atua convincentemente pela coluna d, pelo preço pago a custa de aumento da vulnerabilidade do peão de e3. E a torre de e8 tem aspirações de incremento de sua ação pela coluna e, mediante ruptura em e5 e a custa do câmbio de seu valioso bispo de b8. Todos esses fatores, conjugados, viabilizam um plano de defesa que ficará mais claro a partir do lance 26 das pretas.
26. Bxe3 dxe3
Nesse momento, é possível detectar a versão de Topalov de Administração do Risco frente às incógnitas, ou fatores imprevistos, que teve de enfrentar no decorrer da partida.
E, fiel a seu estilo, seu plano envolve devolução e sacrifício de material para reunir condições de tentar neutralizar a expressiva vantagem das brancas.
Os peões de e3 e b6 seguem sendo alvo de ataque. Aquele, momentaneamente está livre de ataque imediato e este, sujeito a cair no ato. Ainda, conquistado o peão de b6, como corolário sucede também a queda de a5. E aí, os peões brancos “fracos” da coluna a têm caminho livre para a casa de promoção, devidamente apoiados pelas torres e principalmente pelo Bispo Catalão de g2. Melhor resultado da Administração do Risco realizada pelas brancas a partir do lance 15.Da3!! não se poderia esperar. E isso, premeditado desde antes da partida! Não em termos dos lances exatos como se sucederam , e sim no plano das idéias gerais e dos riscos envolvidos para tanto. É assim, portanto, que os mestres administram esses elementos.
Agora, reconhecendo sua inferioridade, Topalov corre atrás do prejuízo e, ele mesmo, entabola um plano consistente para, ao menos, dificultar a conquista do ponto inteiro pelas brancas. Seu plano consiste no seguinte:
a)- Tomando o peão de b6, a torre fica sujeita a ataque imediato pelo bispo de b8. Além disso, o peão de e3 possui latente aspiração de promoção em e1. Para tanto, será necessário desalojar o peão bloqueador de e2 mediante sacrifício de qualidade em d3. Tendo assim marcha livre para e1, colabora para esse evento a localização do Rei branco em g1, o qual poderá ser objeto de xeque descoberto pela diagonal a7-g1.
Portanto, em caso de 27.Txb6, segue 27...Txd3 28.exd3 Ba7 29.Tb1 e2+ 30.d4 (única, se30.Rh1 Bf2 31.T4c1 Td8 32.Te1 Bxe1 33.Txe1 Txd3 34.Rg1 Cg4 e não há como evitar Td3-d1) 30...e5! 31.fxe5 Txe5 (fica agora evidente a utilidade do “fraco” 24...h5, evitando o xeque no Corredor da Morte, o que obrigaria a cobertura com o Cavalo, retirando-o do cenário de batalha) 32.Te1 (se 32.Rf2 e1=D+ 33.Txe1 Cg4+ com no mínimo empate) com posição vantajosa para as brancas, porém não decisiva.
Ainda, após 28.Txb6, Topalov tinha a opção de jogar mais conservadoramente, e talvez de modo mais coerente com seu plano de Administração do Risco.
Mediante 28...e5 29.fxe5 (não serve 29.Cxe5 Td1+ 30.Bf1 Bxe5 31.fxe5 Txe5 com ameaças de Te5-f4, Cf6-g4 e Cf6-e4. As duas ultimas, viabilizadas pelo “fraco” 24...h5, evitando o xeque mortal das torres brancas no Corredor da Morte) 29...Cd7! e a troca desse cavalo pelo de d3 proporciona reais possibilidades de equilíbrio.
27. Bf3!
Anand encontra a continuação mais adequada para garantir sua vantagem posicional.
Atua de forma profilática, evitando o salto do Cavalo preto a g4, reforçando a posição de seu dispositivo central e2-Cd3, e abrindo passo para o Rg1-g2. Ainda, ataca o peão de h5, atando o cavalo na sua defesa. Mais não se poderia esperar de um só lance.
Quanto aos peões pretos de e3, b6 e a5, eles ainda permanecem lá, sujeitos a serem capturados no momento propício.
Com isso, resta controlado o plano de Topalov, prevalecendo aquele que, no caso, revelou-se o mais eficaz.
27...g6 28. Txb6
Cai a base do dispositivo b6-a5.
28...Ba7
Agora não serve 28...Txd3 29.exd3 Ba7 30.Tb1 e2+ 31.d4 e5 32.fxe5 Txe5 33.Te1 e o peão de e2 cai.
Também não serve mais 28...e5 29.Cxe5 Td1+ 30.Rg2 Bxe5 31.fxe5 Txe5 32.Tb5 e, em razão das posições adequadas de Rei e Bispo brancos, todas as alternativas de contrajogo das pretas restaram inviabilizadas.
Topalov resolve então, a custa da entrega dos peões b6 e a5, ativar ao máximo suas peças, procurando invadir a posição das brancas e assim buscar alguma compensação posicional.
29. Tb3 Td4 30. Tc7 Bb8 31. Tc5 Bd6 32. Txa5 Tc8
Pretas conseguem assim alguma compensação pelo material devolvido e sacrificado. Agora, suas peças ocupam posições ativas e pretendem dificultar ao máximo a marcha das brancas para a vitória.
33. Rg2 Tc2 34. a3 Ta2?
Demonstrando o firme propósito de atacar com vigor os “fracos” peões de a3 e a4, Topalov perde o controle das sutilezas da posição, e comete o erro decisivo. Para seguir lutando, aqui era imperioso dobrar torres na coluna c, aquela mesma que foi ferreamente dominada pelas brancas. Então, mediante proposta de troca em c3, o desafiante poderia seguir aspirando um melhor resultado na partida.
35. Cb4!
De imediato, percebendo a posição descoordenada e débil das torres pretas, Anand procede a um “corte” da atividade das três peças principais do desafiante, arrematando imediatamente a contenda.
35...Bxb4
O lance 35.Cb4 impede a fuga da torre de a2 para a1 (35...Ta1 Cc2).
36. axb4
Em razão da deficiente Administração do Risco pelo desafiante, os peões “fracos” da coluna a agora se convertem em temível falange, devidamente apoiados pelas suas peças. Além disso, o peão de e3, que outrora constituiu a vantagem material das pretas, agora também corre o risco de ser capturado a qualquer momento.
36...Cd5
Esse tentativa de sustentação de alguma resistência, interceptando a ação do Bispo Catalão e atacando a falange recém formada, esbarra em vigorosa solução de tranformação de vantagem por parte do campeão.
37. b5!
Devolvendo o peão de vantagem, mas compensando a perda material com a criação de um temível peão-bala, que irá escravizar a torre preta remanescente na casa b8, para evitar fatal promoção.
37...Taxa4 38. Txa4 Txa4 39. Bxd5 exd5 40. b6 Ta8 41. b7 Tb8
Agora, com a sujeição total das peças pretas na defesa para evitar a coroação do peão b, o Rei branco inicia ação de rapinagem dos desamparados peões centrais de Topalov.
42. Rf3 d4 43. Re4 1-0
Esta partida constitui preciosa lição de como um jogador deve se comportar ante uma situação desfavorável em um certame. Estabelecendo um plano adequado de Administração do Risco, Anand colocou seu adversário em uma situação de desconforto ante a novidade teórica que apresentou na posição crítica por ele selecionada. Nessa condição de desconforto, lidando então com as incógnitas de uma situação imprevista, Topalov não acertou o rumo, embora tivesse criado condições para tanto. Também administrou o risco, a seu modo, mas não conseguiu traduzir sua atitude em resultado que fosse benéfico.
Portanto, venceu quem melhor soube administrar seus riscos.
Obs.: texto da Parte I da palestra apresentada no Clube de Xadrez de Curitiba pelo ex-campeão paranaense Ernesto Pereira, elap@terra.com.br em 05/05/2010. www.cxc.org.br